Point da Psicanálise – por Profª Dra. Cléo Palácio
Um espaço de pausa, reflexão e reencontro consigo. Aqui, a Psicanálise & Neurociências ganha voz viva, coração pulsante e linguagem acessível. Este é o Point da Psicanálise, o lugar onde teoria e experiência se encontram, e o saber científico se torna também encontro humano. Texto adaptado e comentado por Profª Dra. Cléo Palácio – CMP Palácio Desenvolvimento Humano, Educacional e Profissional.
TRANSTORNO
DE PERSONALIDADE BORDERLINE: QUANDO O CÉREBRO VIVE EM ESTADO DE ALERTA
Uma leitura
psicanalítica e neurocientífica sobre dor emocional, trauma e sobrevivência
psíquica
Introdução
O Transtorno de Personalidade
Borderline (TPB) é frequentemente mal compreendido, rotulado como excesso
emocional, instabilidade ou “dificuldade de convivência”. No entanto, tanto a
psicanálise quanto a neurociência contemporânea apontam para uma compreensão
muito mais profunda e ética: o TPB não é um defeito de caráter, mas o resultado
de um funcionamento psíquico e cerebral moldado por experiências precoces de
dor, instabilidade e trauma relacional.
Nas últimas décadas, avanços
significativos na neurociência afetiva e na psicanálise contemporânea
permitiram compreender que o cérebro de pessoas com TPB apresenta alterações
funcionais em regiões ligadas à emoção, ao medo, à memória e ao controle dos
impulsos. Essas alterações não surgem ao acaso. Elas se constroem, em grande
parte, em contextos de desenvolvimento emocional marcados por ambientes
imprevisíveis, vínculos inseguros e falhas na contenção afetiva.
Compreender o TPB exige,
portanto, ultrapassar julgamentos morais e adotar uma leitura integrada entre história
subjetiva, funcionamento cerebral e laços afetivos.
1 O cérebro emocional no
Transtorno Borderline
1.1 A amígdala hiperativa: quando
o perigo nunca passa
A amígdala cerebral é uma
estrutura central do sistema límbico, responsável por detectar ameaças,
processar o medo e reagir a estímulos emocionais intensos. Estudos em
neuroimagem mostram que, em pessoas com TPB, a amígdala tende a apresentar hiperativação
crônica, como se o cérebro estivesse permanentemente em estado de alerta.
Pesquisas conduzidas por Joseph
LeDoux e aprofundadas por Bessel van der Kolk demonstram que experiências
traumáticas precoces podem “treinar” o cérebro para reagir como se o perigo
estivesse sempre presente. No TPB, isso se traduz em hipersensibilidade à
rejeição, ao abandono e a pequenos sinais de afastamento afetivo.
Não se trata de exagero
emocional, mas de um sistema de alarme que não consegue desligar.
1.2 O córtex pré-frontal
enfraquecido: sentir muito e conter pouco
Enquanto a amígdala reage de
forma intensa, o córtex pré-frontal, região responsável pela regulação
emocional, planejamento e controle dos impulsos, apresenta funcionamento menos
eficiente em indivíduos com TPB.
Estudos de Antonio Damasio e de Robert
Sapolsky mostram que o estresse crônico e o trauma impactam diretamente a
capacidade do cérebro de regular emoções intensas. O resultado é uma
experiência subjetiva marcada por sentimentos avassaladores sem recursos
internos suficientes para organizá-los.
Essa combinação, emoção intensa
sem contenção, ajuda a compreender explosões emocionais, impulsividade e
sofrimento profundo.
1.3 O hipocampo e a memória
emocional do trauma
O hipocampo, estrutura
ligada à memória e à regulação do estresse, também pode apresentar alterações
em pessoas com TPB. Segundo Mark Solms, o trauma repetido interfere na forma
como o cérebro registra o tempo psíquico.
Por isso, emoções antigas podem
ser revividas como se estivessem acontecendo no presente. Não é “drama”, nem
manipulação: é um cérebro que não consegue distinguir completamente passado
e presente emocional.
2 A leitura psicanalítica do
Borderline
2.1 Freud e a fragilidade do Eu
Embora Freud não tenha utilizado
o termo TPB, suas formulações sobre o Eu fragilizado, o excesso
pulsional e as dificuldades de simbolização ajudam a compreender esse
funcionamento. Em sujeitos marcados por falhas precoces no cuidado, o Eu
encontra dificuldades para mediar impulsos, afetos e realidade externa.
A angústia, nesses casos, não
encontra representação simbólica suficiente, transbordando no corpo, nas
relações e nos atos.
2.2 Winnicott: falhas ambientais
e medo de desintegração
Para Donald Winnicott, muitos
sofrimentos psíquicos graves estão ligados a falhas no ambiente primário.
Quando a criança não encontra um cuidador suficientemente estável, desenvolve
um medo profundo de abandono e desintegração.
No TPB, esse medo reaparece na
vida adulta como urgência afetiva, necessidade intensa do outro e terror da
perda. O amor não é vivido como encontro, mas como tentativa de
sobrevivência emocional.
2.3 Lacan: o sofrimento no laço
com o Outro
Na leitura de Jacques Lacan, o
sofrimento borderline pode ser compreendido como uma dificuldade no laço
simbólico com o Outro. O sujeito oscila entre desejo intenso de fusão e medo
radical do abandono, vivendo relações marcadas por instabilidade e angústia.
O excesso emocional aparece como
tentativa de existir no campo do Outro, de não desaparecer.
3 Borderline não é fraqueza: é
adaptação ao trauma
A neurociência e a psicanálise
convergem em um ponto essencial: o TPB é uma estratégia psíquica e cerebral
de sobrevivência. O cérebro aprendeu a sentir demais porque, em algum
momento da história, sentir era a única forma de não desaparecer
emocionalmente.
Como afirmam autores como Adrian
Raine e van der Kolk, o trauma não é apenas um evento passado, ele se inscreve
no corpo, no cérebro e na forma de se relacionar.
4 Possibilidades de cuidado e
tratamento
Embora não exista uma “cura”
simples, há caminhos clínicos possíveis e eficazes:
·
psicoterapia de longo prazo;
·
abordagens que integrem regulação emocional;
·
reconstrução de vínculos seguros;
·
escuta ética e não julgadora;
·
trabalho com trauma e simbolização da dor.
A psicanálise, especialmente
quando dialoga com a neurociência, oferece um espaço fundamental para que o
sujeito possa dar sentido ao que sente, construir narrativa e reduzir o
sofrimento.
Considerações finais
O Transtorno de Personalidade Borderline
não define uma pessoa difícil. Ele revela uma história que foi difícil de ser
vivida. Por trás de cada reação intensa, existe um cérebro moldado pela dor e
uma subjetividade que aprendeu a sentir demais para tentar não desaparecer.
Compreender é o primeiro passo
para cuidar.
Referências Bibliográficas (todas
reais – ABNT)
DAMÁSIO, Antonio. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
FREUD, Sigmund. O Eu e o Id. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LEDOUX, Joseph. The Emotional Brain. New York: Simon & Schuster, 1996.
RAINE, Adrian. The Anatomy of Violence. New York: Pantheon Books, 2013.
SAPOLSKY, Robert. Behave. New York: Penguin Press, 2017.
SOLMS, Mark. The
Hidden Spring. New York: W. W. Norton & Company, 2021.
VAN DER KOLK, Bessel. The Body Keeps the Score. New York: Viking, 2014.
WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
Nota Ética e Autoral – CMP
Palácio | Point da Psicanálise
Texto elaborado e adaptado pela Profª Dra. Cléo
Palácio, com base em fontes teóricas clássicas da Psicanálise, Neurociência
e Ciências Humanas, de domínio público e acadêmicas.
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