Point da Psicanálise – por Profª
Dra. Cléo Palácio
Um espaço de pausa, reflexão e
reencontro consigo. Aqui, a Psicanálise & Neurociências ganha voz viva,
coração pulsante e linguagem acessível. Este é o Point da Psicanálise, o lugar
onde teoria e experiência se encontram, e o saber científico se torna também
encontro humano. Texto adaptado e comentado por Profª Dra. Cléo Palácio –
CMP Palácio Desenvolvimento Humano, Educacional e Profissional.
O
QUE ACONTECE NO CÉREBRO AO ACORDAR: COMO O INÍCIO DO DIA MOLDA EMOÇÕES,
PENSAMENTOS E ESCOLHAS
Uma
leitura psicanalítica e neurocientífica sobre atenção, repetição e regulação
emocional
Ao
acordar, o cérebro humano não “liga” de forma neutra. Ele desperta carregando
restos do sonho, estados emocionais residuais, memórias implícitas e padrões
automáticos que influenciam profundamente o modo como o dia será vivido. A
neurociência contemporânea demonstra que os primeiros minutos após o despertar
constituem um período de alta plasticidade neural, no qual o cérebro está
especialmente sensível a estímulos internos e externos.
Ao
acordar, o cérebro humano atravessa um momento extremamente sensível e
estratégico. Não se trata de espiritualidade nem de pensamento mágico, mas de neurobiologia
pura. Nos primeiros minutos após o despertar, o cérebro ainda está
transitando entre os ritmos do sono e da vigília, com maior plasticidade
neural, menor filtragem crítica e maior abertura à organização emocional do
dia.
Estudos
em neurociência mostram que, nesse momento, estruturas como o sistema
límbico, o hipocampo, a amígdala cerebral e o córtex
pré-frontal começam a se reorganizar para lidar com estímulos, decisões e
emoções. O modo como essa transição acontece influencia diretamente o nível de
ansiedade, foco, impulsividade e regulação emocional ao longo do dia.
Por
isso, o que fazemos ao acordar não é neutro: ele prepara o cérebro para
um estado de ameaça ou de segurança.
Do
ponto de vista psicanalítico, esse momento marca a transição entre o mundo do
inconsciente, ainda ativo, e a organização do Eu consciente. Do ponto de vista
neurocientífico, trata-se de um estado em que redes emocionais, cognitivas e
corporais estão sendo reorganizadas. O modo como esse processo acontece não é
irrelevante: ele pode favorecer equilíbrio emocional ou intensificar ansiedade,
impulsividade e sofrimento psíquico ao longo do dia.
O
cérebro ao despertar: um estado de alta sensibilidade neural
Durante
o sono, especialmente nas fases REM, o cérebro mantém intensa atividade
emocional e associativa. Ao acordar, estruturas como a amígdala cerebral
(regulação do medo e das emoções), o hipocampo (memória) e o córtex
pré-frontal (planejamento, autocontrole e tomada de decisão) ainda não
estão totalmente sincronizadas.
Estudos
em neurociência mostram que, nos primeiros minutos após o despertar, o córtex
pré-frontal, responsável pela regulação racional e ética do comportamento,
ainda está em processo de ativação plena. Isso significa que o cérebro acorda
primeiro emocional, depois racional. É por isso que pensamentos automáticos,
preocupações, lembranças negativas ou estados de angústia tendem a surgir com
facilidade nesse momento.
Antonio
Damásio demonstra que emoção e cognição são inseparáveis: o cérebro não pensa
“frio” ao acordar. Ele sente antes de organizar o pensamento. Joseph LeDoux
complementa que, nesse estado, a amígdala pode assumir o comando, favorecendo
respostas de alerta, medo ou ansiedade, caso não haja regulação consciente.
A
neurociência explica: o cérebro aprende por repetição e estado emocional
A
neurociência já demonstrou, por meio de autores como Eric Kandel, Antonio
Damásio e Daniel Siegel, que o cérebro aprende por repetição
associada à emoção. Pensamentos recorrentes, quando acompanhados de um
estado emocional específico, fortalecem conexões neurais, esse processo é
conhecido como potenciação de longo prazo.
Isso
significa que:
·
pensamentos
repetidos ao acordar tendem a se tornar padrões;
·
o
cérebro não distingue, inicialmente, entre uma ameaça real e uma ameaça
imaginada;
·
o
estado emocional matinal influencia a liberação de neurotransmissores como cortisol,
dopamina e serotonina.
Se
a pessoa acorda já imersa em preocupação, celular, notícias negativas ou
pressa, o cérebro entra rapidamente em modo de sobrevivência. Se, ao
contrário, ela regula esse início, cria-se um estado interno mais organizado e
menos reativo.
Neurocientistas
como Robert Sapolsky mostram que o excesso de estímulos logo ao acordar
eleva o cortisol e predispõe a reações impulsivas ao longo do dia. Evitar
celular, redes sociais e notícias nos primeiros minutos é uma forma simples de
proteção psíquica.
A
repetição matinal e a construção do dia psíquico
A
psicanálise ensina que o sujeito se organiza pela repetição. Freud já afirmava
que aquilo que não é elaborado tende a se repetir, muitas vezes de forma
automática e silenciosa. Ao acordar, o indivíduo entra em contato com seus
roteiros internos mais antigos: expectativas, medos, autocríticas, desejos e
defesas.
Se
o despertar ocorre de forma abrupta, acelerada ou já mergulhada em estímulos
externos excessivos (notícias, redes sociais, cobranças), o cérebro reforça
circuitos de estresse e vigilância. Robert Sapolsky explica que esse tipo de
ativação precoce mantém elevados os níveis de cortisol, o hormônio do estresse,
impactando humor, memória e capacidade de autorregulação ao longo do dia.
Por
outro lado, quando o início do dia é conduzido com atenção e repetição
consciente, ocorre fortalecimento de circuitos neurais ligados à regulação
emocional, à percepção corporal e à estabilidade psíquica.
A
importância da atenção ao acordar: foco, linguagem e corpo
Daniel
Siegel demonstra que atenção direcionada modifica o cérebro. Aquilo a
que damos atenção, repetidamente, torna-se estrutural. Nos primeiros minutos do
dia, o cérebro está especialmente propenso a registrar padrões — emocionais,
cognitivos e linguísticos.
Do
ponto de vista psicanalítico, a linguagem tem papel central. As palavras não
são neutras: elas organizam o psiquismo. Lacan já afirmava que o inconsciente é
estruturado como linguagem. Assim, repetir internamente frases de
autodepreciação, medo ou pressa reforça esses circuitos. Da mesma forma,
palavras simples de orientação interna, sem promessas mágicas, ajudam o cérebro
a criar referências simbólicas de segurança.
Exemplos
simples, coerentes com a ciência:
·
“Posso
conduzir meu dia com mais calma.”
·
“Não
preciso resolver tudo agora.”
·
“Estou
presente no que faço.”
Essas
frases não “atraem” resultados por magia, mas organizam redes neurais,
reduzem ativação excessiva da amígdala e favorecem maior atuação do córtex
pré-frontal.
Corpo,
respiração e regulação emocional
A
neurociência afetiva, representada por autores como Bessel van der Kolk e Mark
Solms, mostra que o corpo participa ativamente da regulação psíquica. Ao
acordar, o sistema nervoso ainda está transitando do repouso para a vigília.
Movimentos lentos, alongamentos suaves e atenção à respiração ajudam o sistema
nervoso autônomo a sair do modo de alerta e entrar em um estado de maior
equilíbrio.
Respirações
profundas e lentas ativam o nervo vago, favorecendo redução da ansiedade e
melhor integração entre emoção e pensamento. Não se trata de técnicas
complexas, mas de gestos simples que sinalizam ao cérebro que não há ameaça
iminente.
O
que a psicanálise nos ensina sobre esse momento
A
psicanálise não propõe controle absoluto do inconsciente, mas sim escuta,
simbolização e responsabilidade. O início do dia é um convite à observação:
perceber como se acorda, quais pensamentos surgem, quais emoções se manifestam.
Esse olhar já é, em si, um ato terapêutico.
Winnicott
nos lembra que o cuidado consigo cria um espaço interno de sustentação.
Pequenos rituais matinais, silêncio, atenção, respiração, palavras simples,
funcionam como um “ambiente suficientemente bom” para o psiquismo iniciar o dia
com menos fragmentação.
Não
é sobre perfeição, é sobre direção
A
neurociência é clara: não controlamos totalmente nossos pensamentos, mas
podemos influenciar os caminhos que o cérebro tende a percorrer. A
psicanálise é igualmente clara: não se trata de eliminar conflitos, mas de
criar condições para lidar com eles de forma menos destrutiva.
Começar
o dia com mais presença não garante felicidade constante, mas reduz
automatismos, amplia a capacidade de escolha e fortalece a responsabilidade
subjetiva. É nesse ponto que neurociência e psicanálise se encontram: na
compreensão de que o sujeito não é refém absoluto de seus impulsos, mas também
não é senhor absoluto de sua mente.
O
verdadeiro trabalho não é “pensar positivo”, mas pensar com consciência,
sentir com escuta e agir com maior integração entre corpo, emoção e linguagem.
Exercícios simples ao acordar, coerentes com a ciência Faça isso ao acordar:
5 minutos entre o sono e a vigília para organizar mente, emoção e foco
Aqui
não se trata de promessas mágicas, mas de regulação emocional consciente,
baseada em evidências.
1.
Respiração reguladora (2 minutos)
Respirar
lentamente, inspirando pelo nariz e expirando pela boca, ajuda a reduzir a
ativação da amígdala cerebral, diminuindo o estado de alerta excessivo.
Isso é amplamente documentado em estudos sobre o nervo vago e o sistema
parassimpático.
2.
Atenção ao corpo
Antes
de levantar, perceber o corpo apoiado na cama, os pés, as mãos, a respiração.
Essa simples atenção ativa circuitos de presença e reduz a dissociação
típica da ansiedade matinal.
3.
Repetição consciente de uma frase organizadora
“Eu
me encontro feliz, com sabedoria e paz para conduzir o meu dia.”
Por
quê isso funciona?
·
Não
é uma negação da realidade;
·
Não
promete algo externo;
·
Organiza
o estado interno;
·
Ativa
redes linguísticas e emocionais de forma integrada.
Segundo
Daniel Siegel, palavras organizam estados mentais. Segundo Mark Solms,
a linguagem pode modular afetos primários. E segundo Freud, a palavra
tem efeito psíquico real.
O
cérebro registra essa repetição como um eixo organizador emocional, não
como ilusão.
4.
Evitar estímulos agressivos imediatos
Neurocientistas
como Robert Sapolsky mostram que o excesso de estímulos logo ao acordar
eleva o cortisol e predispõe a reações impulsivas ao longo do dia. Evitar
celular, redes sociais e notícias nos primeiros minutos é uma forma simples de
proteção psíquica.
Começar
o dia é um ato clínico consigo mesmo
Cuidar
do modo como se acorda não é autoajuda. É higiene mental, regulação
emocional e responsabilidade psíquica. Pequenos gestos conscientes,
repetidos diariamente, moldam o funcionamento do cérebro e a forma como o
sujeito se relaciona com o mundo.
Não
controlamos tudo, mas podemos organizar o ponto de partida.
Referências
DAMÁSIO,
Antonio. O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
FREUD,
Sigmund. Além do princípio do prazer. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
LACAN,
Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
LEDOUX,
Joseph. The Emotional Brain. New York: Simon & Schuster, 1996.
SAPOLSKY,
Robert. Behave: The Biology of Humans at Our Best and Worst. New York:
Penguin, 2017.
SIEGEL,
Daniel. The Developing Mind. New York: Guilford Press, 2012.
SOLMS,
Mark. The Hidden Spring. New York: W. W. Norton, 2021.
VAN
DER KOLK, Bessel. The Body Keeps the Score. New York: Viking, 2014.
WINNICOTT,
Donald. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
Nota
Ética e Autoral — CMP Palácio | Point da Psicanálise
Conteúdo
elaborado pela Profª Dra. Cléo Palácio, com base em referências científicas
clássicas da Psicanálise e da Neurociência. Texto de finalidade educativa e
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