Point da Psicanálise – por Profª Dra. Cléo Palácio

 

Um espaço de pausa, reflexão e reencontro consigo.

Aqui, a psicanálise ganha voz viva, coração pulsante e linguagem acessível.

Este é o Point da Psicanálise, o lugar onde teoria e experiência se encontram, e o saber científico se torna também encontro humano.

Texto adaptado e comentado por Profª Dra. Cléo Palácio – CMP Palácio Desenvolvimento Humano, Educacional e Profissional

 

Esquizofrenia na Psicanálise: Estrutura, Sofrimento Psíquico e Caminhos de Cuidado Clínico

 

A esquizofrenia é uma das experiências subjetivas mais complexas e desafiadoras do campo clínico. Embora amplamente descrita pelas ciências médicas, a psicanálise oferece uma perspectiva singular ao valorizar o modo como cada sujeito vive, simboliza e organiza seu sofrimento. Essa abordagem permite compreender significados que ultrapassam a lógica biomédica, revelando a dimensão simbólica, relacional e histórica da psicose.

 

1. O que a psiquiatria descreve como esquizofrenia

 

A psiquiatria caracteriza a esquizofrenia como um transtorno marcado por alterações no pensamento, na percepção e na capacidade de organizar a realidade. Entre suas manifestações estão:

            •          alucinações auditivas;

            •          delírios;

            •          desorganização do pensamento e da linguagem;

            •          retraimento social;

            •          alterações afetivas;

            •          sensação de estranhamento em relação ao próprio corpo e às próprias ideias.

A psicanálise parte desse ponto, mas acrescenta uma camada essencial: o modo como o sujeito tenta construir sentido diante dessa ruptura interna.

 

 

2. Freud: a psicose como tentativa de reconstrução da realidade

 

Sigmund Freud foi pioneiro ao propor que a psicose não representa apenas um afastamento da realidade externa, mas uma forma particular de reorganizá-la.

Para Freud, quando a realidade se torna excessivamente invasiva ou ameaçadora, o Eu rompe com ela como mecanismo de defesa. A partir disso, o sujeito produz novos significantes, delírios, vozes, ideias, para construir um novo modo de se orientar no mundo.

Assim, o delírio não é visto como mera “perda de razão”, mas como uma tentativa de cura, um reorganizador simbólico diante da falha estrutural do laço com a realidade.

 

3. Lacan: a foraclusão e a falha estrutural na inscrição do simbólico

 

Jacques Lacan aprofunda a leitura freudiana ao afirmar que a psicose decorre de uma falha estrutural na constituição do simbólico.

O conceito de foraclusão do Nome-do-Pai, apesar de amplamente citado, pode ser compreendido de forma direta:

            •          A subjetividade se organiza através da linguagem, das normas simbólicas e das referências que estruturam o pensamento.

            •          Na psicose, uma dessas referências fundamentais não chega a se inscrever.

            •          Como resultado, o sujeito não dispõe de sustentação simbólica suficiente para filtrar, ordenar ou simbolizar as intensidades do real.

Essa ausência permite que elementos invasivos, vozes, frases desconexas, significados fragmentados, irrompam sem mediação. A realidade deixa de ser organizada simbolicamente e passa a ser vivida de forma direta, crua e excessiva.

 

4. Winnicott: falhas precoces na sustentação emocional e o impacto na integração do self

 

Donald Winnicott oferece outra perspectiva: a esquizofrenia pode surgir quando falham, de maneira intensa e prolongada, experiências emocionais básicas que possibilitam a formação de um self coeso.

 

No início da vida, o bebê depende de um ambiente estável, previsível e suficientemente bom para integrar suas vivências sensoriais e afetivas. Quando esse ambiente falha de forma grave, a subjetividade pode permanecer fragmentada, sem a formação de uma unidade psíquica integrada.

Em adultos, a clínica revela que muitos pacientes psicóticos enfrentam dificuldades em delimitar fronteiras internas, manter continuidade emocional e estabilizar suas percepções. A sustentação clínica, inspirada nesse pensamento, torna-se então um elemento terapêutico central.

 

5. Bion: emoções sem forma e o excesso que invade o psiquismo

 

Wilfred Bion amplia a compreensão ao afirmar que muitos pacientes psicóticos não conseguem transformar emoções em pensamentos. As experiências emocionais chegam como intensidades brutas, sem forma, sem nome e sem possibilidade de serem elaboradas. Esse excesso, que deveria ser simbolizado, retorna ao sujeito como:

            •          angústias súbitas;

            •          sensações corporais estranhas;

            •          fragmentações de linguagem;

            •          vozes e imagens que parecem vir de fora;

            •          impossibilidade de organizar a experiência interna.

A função do analista, para Bion, é oferecer uma mente capaz de acolher e transformar esses conteúdos, uma operação psíquica que possibilita, aos poucos, a estabilização da vida mental.

 

6. A clínica psicanalítica com pacientes esquizofrênicos

 

A psicanálise não se apoia na correção da fala, no confronto ao delírio ou na tentativa de normatização. Ela trabalha a partir da singularidade do sujeito e da lógica própria que organiza sua experiência.

Alguns pilares clínicos são fundamentais:

 

6.1. Estabilidade e previsibilidade

 

Pacientes psicóticos necessitam de um ambiente clínico regular, horários fixos e uma presença analítica que não produza rupturas inesperadas. A constância funciona como um eixo estruturante.

 

6.2. Escuta sem violência interpretativa

 

Interpretações diretas ou confrontos podem gerar intensificação da angústia. A escuta deve acompanhar o ritmo do paciente, acolhendo sua lógica e oferecendo espaço para que a palavra encontre forma.

 

6.3. Construção de amarrações simbólicas

 

Pequenas ligações, repetições organizadas e referências consistentes ajudam a costurar o tecido simbólico fragilizado.

 

6.4. Trabalho conjunto com psiquiatria

 

A psicanálise reconhece as contribuições da psiquiatria e da neurociência, especialmente o papel essencial da medicação em muitos casos. O cuidado é interdisciplinar.

 

6.5. Redução da angústia

 

A intervenção principal não é “explicar o delírio”, mas reduzir a angústia que acompanha a desorganização psíquica. Quando a angústia diminui, o sujeito ganha espaço para reorganizar sua relação com o mundo.

 

6.6. Reinscrição do sujeito no laço social

 

A psicose isola. A clínica psicanalítica favorece, aos poucos, a criação de novas formas de laço: trabalho, vínculos, expressão, rotina e sentido de vida.

 

Conclusão

 

A esquizofrenia, na psicanálise, não é reduzida a um conjunto de sintomas, mas compreendida como uma forma singular de existir. Freud, Lacan, Winnicott e Bion oferecem perspectivas que se complementam e revelam o sofrimento profundo e complexo vivido pelo sujeito psicótico.

A abordagem psicanalítica, ao valorizar a singularidade, a história e o modo próprio de organização subjetiva, atua não apenas na redução do sofrimento, mas na reconstrução das possibilidades de vida, relação e sentido. A psicose, assim, deixa de ser vista como ruptura absoluta e passa a ser entendida como uma tentativa dolorosa de reorganização diante do excesso do real.

 

Referências

 

BION, Wilfred. Aprender com a Experiência. Rio de Janeiro: Imago, 1991.

FREUD, Sigmund. Neurose e Psicose (1924). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, Sigmund. Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranoia (Schreber) (1911). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FREUD, Sigmund. O Ego e o Id (1923). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 3: As Psicoses. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

WINNICOTT, D. W. O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

WINNICOTT, D. W. A Família e o Desenvolvimento Individual. São Paulo: Martins Fontes, 1980.

 

Nota Ética e Autoral – CMP Palácio | Point da Psicanálise

 

Texto elaborado e adaptado pela Profª Dra. Cléo Palácio com base em autores clássicos da Psicanálise e da Neurociência, para fins educacionais, científicos e culturais, em conformidade com a Lei 9.610/98 (Direitos Autorais) e a Lei 13.709/18 (LGPD). A reprodução parcial é permitida apenas com citação da fonte e da autoria.