Por Profª. Dra. Cléo Palácio – Instituto CMP Palácio Desenvolvimento Humano, Educacional e Profissional

Introdução

A pergunta que atravessa séculos continua atual: o que é estar consciente e o que permanece inconsciente? Entre a clínica psicanalítica e os achados das neurociências, o debate ganhou novos contornos. No artigo “O inconsciente e a consciência: da psicanálise à neurociência” (Psicologia USP, v.18, n.3, 2007), Carlos Eduardo de Sousa Lyra revisita a tradição freudiana, dialoga com as críticas filosóficas de John Searle e integra proposições neurocientíficas de António Damásio e Gerald Edelman. O resultado é um mapa claro e provocador: compreender a mente exige ouvir a linguagem do sujeito e observar o cérebro em ação — sem reduzir um ao outro.

 O Projeto Freudiano: entre neurônios e qualidades psíquicas

Lyra parte do Projeto para uma Psicologia Científica (1895) para lembrar que Freud já tentava articular bases neurobiológicas a fenômenos psíquicos. Freud hipotetiza sistemas neuronais distintos (percepção, memória e consciência) e enfrenta um velho impasse das ciências naturais: como explicar “qualidade” subjetiva (o que se sente) com variáveis quantitativas? Ao aproximar percepção-consciência do que depois chamaria de Pcpt.-Cs., Freud indica que a consciência é como um “órgão sensorial” de qualidades psíquicas — uma pista potente para os diálogos atuais entre clínica e neurociência.

Searle e a “redescoberta da mente”: consciência no primeiro plano

No passo seguinte, o artigo apresenta as críticas de John Searle ao uso inflacionado do “inconsciente” que teria, segundo ele, ofuscado a investigação da própria consciência. Para Searle, há um “naturalismo biológico”: os fenômenos mentais são causados por processos neurofisiológicos, e a consciência é intrínseca ao cérebro — sempre em primeira pessoa. Ele diferencia o inconsciente “superficial” (potencialmente consciente) de um “profundamente inconsciente” que, na sua visão, não faria sentido intencional. Lyra pondera: a crítica de Searle atinge melhor um inconsciente explícito e linguístico, deixando aberta a necessidade de pensar um inconsciente implícito (pré-verbal, não linguístico) com causalidade própria.

 

Damásio: self, mapas neurais e sentimento como narrativa não verbal

Com António Damásio, o texto mostra que é possível modelar consciência sem cair no puro linguístico. Damásio descreve uma consciência central que nasce da interação organismo–objeto, mapeada em redes de primeira e segunda ordem; os sentimentos seriam relatos não verbais dessas variações corporais. A partir de memórias autobiográficas (muitas implícitas), emerge um self autobiográfico; depois, uma consciência ampliada capaz de projetar passado e futuro. Aqui, Lyra conecta os pontos: há um campo de experiências implícitas que sustenta o explícito, legitimando a hipótese de um inconsciente implícito com efeitos clínicos.

 Edelman: valor–categoria, bootstrapping e consciência elaborada

Gerald Edelman distingue consciência primária (memória do presente, integração perceptiva) de consciência elaborada (temporalidade estendida + linguagem). Seu modelo evolutivo integra um sistema límbico-troncular (valores, corpo, afeto) e um sistema corticotalâmico (categorização, aprendizagem), conectados por circuitos reentrantes. Daí surgem memórias de valor–categoria e, com o bootstrapping semântico, a linguagem e o eu reflexivo. Lyra aproxima isso da psicanálise: a passagem do implícito (procedural/emocional) ao explícito (linguístico) ecoa o recalque originário freudiano e ajuda a situar sintomas em registros diferentes.

Dois inconscientes? Implicações clínicas propostas por Lyra

A síntese do artigo aponta um quadro útil à prática:

  • Há um inconsciente implícito (psicossomático/pulsional), pré-verbal, ancorado em memórias emocionais e procedurais;
  • E um inconsciente explícito (propriamente psíquico), linguístico, articulado a memórias declarativas e às defesas do ego (memória de trabalho, seleção, supressão e repressão).

Consequência clínica:

  • Quando o trauma se dá antes da maturação hipocampal (fase pré-verbal), os registros tendem a permanecer implícitos, aparecendo como angústias intensas, pânico, somatizações. A técnica demanda construção de sentido (síntese psíquica), não apenas interpretação.
  • Quando o trauma é verbalizável (fase posterior), a clínica analítica (recordar/ressignificar) ganha potência, pois opera sobre memórias explícitas e defesas do ego.

Essa chave de leitura não opõe psicanálise e neurociência; ao contrário, ajuda a escolher “como” trabalhar: construir quando faltam palavras; analisar quando o simbólico já está em jogo.

Conclusão

O artigo de Carlos Eduardo de Sousa Lyra nos convida a desarmar dicotomias. O corpo sente, a mente significa, a linguagem dá forma  e o sujeito emerge nesse entrelaçamento. Há dores que pedem palavra; há dores que pedem presença, vínculo, respiração e tempo, até que a palavra nasça. Integrar psicanálise e neurociência não é diluir diferenças: é honrar a complexidade do humano.
No consultório, na escola e na vida, o gesto clínico cuidadoso começa por uma pergunta simples e radical: o que aqui é implícito e o que já pode ser dito? A partir daí, o cuidado encontra caminho.

Referência

LYRA, Carlos Eduardo de Sousa. O inconsciente e a consciência: da psicanálise à neurociência. Psicologia USP, v.18, n.3, 2007.
DOI: 10.1590/S0103-65642007000300004
Disponível em:
https://www.scielo.br/j/pusp/a/W3yS8bkSnSnRzd3TFtZ4zcJ/?lang=pt
Acesso em: 28 out. 2025.

 

Texto adaptado e comentado por Profª. Dra. Cléo Palácio – CMP Palácio Desenvolvimento Humano, Educacional e Profissional.
Reflexão inspirada no artigo original de Carlos Eduardo de Sousa Lyra (2007).